Em meio a tantas preocupações no mundo inteiro e no Brasil sobre a disseminação do “novo” COVID-19 (a novidade agora está no novo agente do coronavírus descoberto há pouquíssimo tempo), um fato “sutil”, porém importante e óbvio, revelou-se esta semana. O sistema público de saúde precisa ser valorizado. É evidente que o setor privado também tem um papel enorme nesse processo para dar suporte no atendimento aos casos suspeitos. Porém, o “grosso” do trabalho mesmo costuma ser feito pelo sistema público.
Para quem não sabe, este “tal” do sistema público de saúde, no Brasil, é representado pela sigla SUS (Sistema Único de Saúde). Foi criado com a Constituição de 1988, sendo considerado um dos maiores e mais complexos sistemas mundiais do gênero. Complexo porque envolve desde a atenção primária, com postos de saúde espalhados em comunidades carentes e bairros mais nobres do país, até a alta complexidade, com hospitais de atendimento mais qualificado e alta tecnologia envolvida. O Brasil é modelo nisso. Tem deficiências, sim, e muitas, até porque o nosso país tem dimensões continentais e o sistema ainda está em construção. Mas a sua eficácia e importância são comprovadas dentro e fora daqui.
E o que isso tem a ver com o coronavírus? Tudo. É o sistema de saúde quem está norteando as regras e orientações de cuidado neste momento, bem como as decisões políticas. Na última quinta 12 de março de 2020, o Presidente da República da França, Emmanuel Macron, fez um pronunciamento em cadeia nacional sobre a situação do coronavírus e anunciou medidas mais duras de controle da doença, entre elas o fechamento de escolas e universidades, além de reconhecer a possibilidade de medidas de fechamento de fronteiras em comum acordo com a União Europeia.
Lá, pelas tantas, já ao final do pronunciamento, Macron disse o impensável para um estadista centrista liberal como ele: defendeu o sistema público de saúde. O mesmo sistema que, na França, vem sendo pouco a pouco modificado em prol do Estado mínimo, do livre mercado e dos direitos individuais, só para citar algumas das ideias defendidas por essa filosofia.
Minha intenção não é fazer críticas ao liberalismo nesta reflexão. Mas tentar entender como um político dessa linha filosófica defende – ao menos verbalmente – o avesso das medidas tomadas. Defender o sistema público de saúde é entendê-lo, a princípio, de forma mais ampla para uma maior faixa da população.
No Brasil, o surgimento do SUS permitiu o acesso universal ao sistema público de saúde. Antes da década de 1990, só para se ter uma ideia, a saúde pública era para poucos. Só quem trabalhava com carteira assinada tinha direito ao atendimento nos hospitais próprios ou conveniados através do Inamps, o “antepassado” mais próximo do SUS. Os demais precisavam pagar do próprio bolso. Nos últimos tempos, vemos a valorização crescente dos planos de saúde país afora como a alternativa viável para a saúde das pessoas que podem pagar alguma coisa (mas isso já é outra história…).
Voltando ao Macron. Será que teria ele mudado o pensamento sobre esse aspecto político-econômico do liberalismo ou apenas está adotando uma retórica bonita de se assistir e ouvir, mas vazia de intenções reais? Vamos ao trecho do discurso:
“Meus queridos compatriotas, amanhã teremos que aprender as lições do momento em que estamos passando, questionar o modelo de desenvolvimento em que nosso mundo está engajado há décadas e que revela suas falhas em plena luz do dia, questionar as fraquezas de nossas democracias. O que essa pandemia já está revelando desde já é que os cuidados de saúde gratuitos, sem condições de renda, carreira ou profissão, nosso Estado de bem-estar não são custos ou encargos, mas bens preciosos, bens essenciais, quando o destino ataca. O que essa pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado. Delegar nossa comida, nossa proteção, nossa capacidade de curar, nosso ambiente de vida, basicamente, para os outros é loucura. Devemos recuperar o controle, construir ainda mais do que já construímos uma França, uma Europa soberana, uma França e uma Europa que mantêm firmemente seu destino na mão. As próximas semanas e meses exigirão quebras de decisão nesse sentido. Eu os assumirei”.
Que quebras de decisão serão essas de fato? Só vamos saber nas cenas dos próximos capítulos… Mas parece haver algo de positivo nesta atual pandemia, se é que podemos identificar algo de Pollyanna nisso. Revelou o inusitado no discurso do Macron, um político que não se dizia nem de esquerda nem de direita na época da campanha política, apesar de ser bem liberal nas atitudes e decisões. Entregar as grandes políticas públicas para a iniciativa privada, sob a promessa de monitoramento, fiscalização e controle, pode ser um perigo maior que se imagina sob alguns aspectos. Como deixar, por exemplo, a iniciativa privada assumir ações de cuidado com a saúde de forma mais ampla em contextos de epidemia ou pandemia? O que se vê, especialmente nos países que estão vivendo isso, é uma sobrecarga grande dos serviços de saúde, sobretudo os públicos, algo inevitável.
O noticiário brasileiro vem alertando sobre o tempo todo, tomando como base o exemplo a epidemia vivenciada em países como a China e a Itália. Por mais críticas que receba e falhas que tenha, o SUS brasileiro ainda é um dos melhores sistemas de saúde no mundo capazes de atuar com eficácia tanto no ambiente das comunidades (caso de quem não precisa necessariamente de atendimento de urgência e pode ser atendido no posto de saude ou até mesmo em casa pelos agentes de saúde) quanto nos serviços de saúde mais complexos.
Um aplicativo criado pelo Ministério da Saúde se propõe a orientar a população a se prevenir e identificar possíveis casos suspeitos de coronavírus, com mapas de postos de saúde mais perto dos usuários, notícias e principais recomendações. Isso é SUS, sabia? Ciente dos limites de pacientes que podem ser atendidos nos sistemas de saúde do mundo inteiro, atitudes como essa podem fazer a diferença. Mas não se sustentam sozinhas, evidentemente. Antes de mais nada, depende de tomadas de decisões mais rápidas e assertivas dos governos nas diferentes esferas (União, Estados e Municípios) baseadas em dados epidemiológicos e no cotidiano dos serviços de saúde, que concentram o substrato do conhecimento produzido com as práticas.
The spread of COVID-19
fonte: <https://www.pbs.org/newshour/health/map-watch-how-covid-19-traveled-the-world>
ESTRATÉGIAS
Nos últimos dias, estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e Pernambuco adotaram medidas mais restritivas, como a suspensão de aulas em escolas e universidades, em função da confirmação de casos e da transmissão interna nessas localidades. Houve também um cancelamento de eventos públicos com mais de 500 pessoas, inclusive em outras partes do país, como forma de reduzir a circulação do vírus e evitar a tal da “transmissão comunitária” (quando já não é possível identificar a trajetória do vírus em determinado ambiente geográfico), que tanto aparece nas matérias e reportagens jornalísticas pela mídia afora. Festivais, celebrações religiosas e campeonatos esportivos estão temporariamente suspensos até segunda ou terceira ordens.
“É preciso manter a estratégia de hoje, mas acelerar a de amanhã. Para não ocorrer como na Itália. Lá, infelizmente, não perceberam que havia transmissão. Só começam a notar quando estavam chegando casos graves e mortes”, afirmou, em entrevista ao Estadão, o médico sanitarista pernambucano Jarbas Barbosa, vice-diretor da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), braço da Organização Mundial de Saúde (OMS) nas Américas. Ações de contenção (1ª etapa) e preparação da rede de assistência, além de enfoque a grupos de risco, como idosos e doentes crônicos, quando há a confirmação da transmissão da doença (2ª etapa), são estratégias muito importantes para controlar a doença. Ciente de que não existe uma “bala de prata” que resolva tudo, como nas antigas teorias de comunicação, ele reconheceu como fundamental a adoção de uma série de medidas por parte das autoridades, avaliando com agilidade o momento mais adequado de tomá-las. O cancelamento de aulas, por exemplo, dependeria do aumento de casos e do tipo de transmissão a fim de não causar pânico na população e não gerar descrédito indevido nas pessoas.
ELEIÇÕES
Só as autoridades são capazes de decidir o que fazer de posse dos dados epidemiológicos, que norteiam, entre outras coisas, as decisões de saúde. Estamos vivendo um ano político no Brasil e em outros países. A França, por exemplo, num ato surpreendente, manteve as eleições municipais, ocorridas no domingo 15 de março de 2020. “Seria um golpe de Estado, um golpe de força institucional. Seria a utilização da crise sanitária para evitar um fracasso eleitoral”, disse, em entrevista à imprensa, o presidente do partido Os Republicanos (Les Républicains, em francês), Christian Jacob. Para integrantes de dentro do governo, recuar poderia ser um sinal de fraqueza política neste momento. Além disso, uma mudança demandaria maioria do Parlamento francês, o que talvez não fosse o caso. Detalhe: o voto lá não é obrigatório, ao contrário daqui do Brasil. A abstenção no primeiro turno das eleições foi recorde, girando em torno de 38%. Em 2014, o percentual foi de 54,5%.
As eleições municipais também ocorrerão aqui pelas terras brasileiras no próximo mês de outubro, quando serão escolhidos prefeitos, vice-prefeitos e vereadores de 5.568 cidades do país. Até lá, muita água ainda vai rolar por debaixo da ponte. Por enquanto, a experiência histórica mostra que a ocorrência de surtos e epidemias em anos eleitorais mudam as rotinas das cidades e os hábitos, a exemplo do que vivemos atualmente, com o cumprimento mais distanciado entre as pessoas como forma de prevenção para evitar o contágio. Além disso, determinam para mais ou para menos as atitudes e decisões políticas dos dirigentes, a depender do real conhecimento sobre o contexto no momento e da vontade política de fazer. A saúde pode mudar, sem sombra de dúvida, qualquer cenário em voga.
Quero aqui neste texto apenas reforçar o quanto o sistema público de saúde é e será decisivo na assistência à saúde e na tomada de respostas políticas. E antes de você abrir a boca para dizer que o SUS não presta sem saber da real complexidade que o envolve e dos benefícios que ele traz efetivamente para a vida das pessoas em todas as camadas sociais, pare um pouco e procure se inteirar mais. Busque informações mais consistentes sobre ele, converse com quem trabalha nele. E reflita. A fala dos dirigentes pode ser um bom indicador da forma como eles encaram o sistema público e da gestão política em torno disso. Que não estejamos diante de meras retóricas vazias de conteúdo e que saibamos valorizar as lições a serem aprendidas aqui e lá fora nesta pandemia do coronavírus e para além dela a fim de pensar e fazer a diferença.
*Marcelo Robalinho é Professor Adjunto de Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em Informação e Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro (Fiocruz-RJ), com estágio doutoral no Centre d’analyse du discours pela Université Paris XIII e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).