A jornada de saúde de um paciente trans é composta por particularidades, que podem incluir terapia hormonal, cirurgias de afirmação de gênero e a necessidade de acompanhamento médico contínuo. Nesses casos, para esses pacientes, devem ser designados profissionais capacitados de especialidades como ginecologia e endocrinologia. Contudo, não é essa a realidade que a população trans encontra no sistema de saúde brasileiro.
A saúde trans, de uma forma geral, ainda é uma especialidade relativamente nova, assim como muitas de suas intervenções. Lucia Alves Lara, que é ginecologista, obstetra, coordenadora do Ambulatório de Incongruência de Gênero do Centro de Reprodução Humana do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e presidente da Comissão Nacional Especializada em Sexologia da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), lembra que as políticas públicas voltadas à população trans ainda são recentes e restritas:
“É de 2013 a portaria que regulamenta o cuidado à população trans pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O documento previa cuidados em locais específicos, como hospitais-escola e outros centros elegíveis. Nós temos centros em São Paulo, em Recife e em Porto Alegre, por exemplo. Mas ainda são poucos espalhados pelo Brasil. Como uma pessoa trans do Acre vai receber esse tipo de cuidado?”.
Ela explica que “o ginecologista, por exemplo, tem um papel fundamental no cuidado tanto de homens quanto de mulheres trans, porque ambos terão órgãos que demandam essa atenção. Estudos mostram que a mulher trans que usa estrogênio e tem mamas tem um risco aumentado de câncer de mama, quando comparado a um homem cis, e precisa fazer mamografia quando estiver na idade adequada. E um homem trans que não tenha passado pela cirurgia de afirmação de gênero precisa também manter em dia as rotinas de cuidado ginecológicos”.
Busca por profissionais de saúde pode ser desafiadora
Por mais importante que seja o acompanhamento médico, nem sempre encontrar um profissional qualificado e com quem o paciente se sinta seguro é uma tarefa fácil. No caso do influencer Tito Bernard, a maior dificuldade foi a falta de informação e direcionamento:
“Eu comecei a pesquisar sobre a transição hormonal entre 2015 e 2016 e não havia informações sobre a gratuidade da hormonização pelo SUS. Só entre 2018 e 2019, com 21 anos, eu consegui o direcionamento em uma UBS, por meio de um clínico geral, onde fui muito bem acolhido. Ainda assim, fui o primeiro homem trans atendido pela minha endocrinologista, mas ela sempre me passou uma confiança extrema, além de cuidado e carinho”.
Desde então, ele faz os tratamentos via saúde pública, em uma AMA Especialidades na zona norte da cidade de São Paulo, por onde tem acesso também aos medicamentos necessários de forma gratuita.
No caso da atriz Anne Mota, de 24 anos, a escolha dos médicos é feita sob o critério da indicação, a forma que encontra para se sentir mais segura em uma consulta: “Eu faço uso do sistema particular e de planos de saúde e sempre tive dificuldades de encontrar médicos com os quais me sentisse acolhida. Já sofri transfobia [preconceito e discriminação em razão da identidade de gênero, contra travestis e transexuais] por parte dos profissionais de saúde e por isso passei a só me consultar com médicos que foram indicados por outras pessoas trans”.
Sua procura por cuidado médico começou aos 12 anos de idade, mas foi apenas aos 17, por meio de indicação, que Anne encontrou uma médica endocrinologista de confiança em Recife, onde morava, com a qual começou a terapia hormonal de afirmação de gênero. Quando se mudou para São Paulo, foi por meio de uma clínica voltada especificamente para o cuidado a pessoas trans que a atriz encontrou uma equipe médica com a qual se sente acolhida.
Hoje, tanto Anne quanto Tito estão amparados por médicos de confiança. Eles e outras pessoas trans, contudo, muitas vezes se sentem seguras apenas dentro desse contexto e acabam limitando seu cuidado com a saúde a apenas um único consultório médico específico. Ou seja, ter encontrado um especialista não quer dizer que esses pacientes estejam amplamente respaldados pelo sistema de saúde.
Acolhimento é a palavra-chave para o atendimento a pessoas trans
Andrea Hercowitz, pediatra, hebiatra, autora de livros sobre saúde LGBTQIAP+ e coordenadora do Grupo Médico Assistencial (GMA) voltado a essa população no Hospital Israelita Albert Einstein, ressalta que as pessoas trans, assim como qualquer paciente que precisa de atendimento médico, deve contar com equipes multidisciplinares onde quer que procurem assistência – seja para assuntos relacionados à afirmação de gênero ou outros problemas de saúde.
“É claro que, em alguns momentos, precisaremos de especialistas em pacientes trans para garantir o seu bem-estar. Mas esses pacientes também vão precisar de atendimento generalista e precisam ter esse cuidado garantido em todos os espaços de saúde”, afirma.
Atualmente, Anne está passando, por exemplo, por uma dificuldade relacionada a sua rotina de cuidados com a saúde: precisa fazer um exame de imagem invasivo que requer o uso de anestesia, mas o fato de não ser permitida a presença de um acompanhante durante o procedimento fez com que ela se sentisse insegura a ponto de desistir de realizá-lo mesmo já estando no hospital.
“São coisas que parecem simples, mas que têm um peso diferente para nós. Eu sou uma mulher trans e tenho medo do que pode acontecer, estando vulnerável em uma maca. Agora, estou em busca de um médico em quem eu sinta confiança para realizar o exame. Prefiro, inclusive, que seja uma mulher. Mas nem sempre é fácil encontrar o profissional ideal”, conta.
Tito enfrenta problemas parecidos: ele afirma que, por ser um homem trans, procura atendimento em pronto socorro, por exemplo, apenas em último caso. “Sempre há medo. Eu nunca sei como serei tratado nesses ambientes. Então, muitas vezes, eu prefiro não ir ao hospital e esperar a consulta com a minha médica”, comenta.
Mau atendimento traz consequências à saúde da população trans
O desconforto, a insegurança e o medo, palavra comum em ambos os relatos, é resultado, muitas vezes, da conduta equivocada dos próprios profissionais de saúde, afirma Andrea. Em vez de acolher pacientes da maneira correta, alguns deles agem como bloqueadores do acesso ao sistema:
“Um profissional que não saiba falar de forma respeitosa com uma pessoa trans, que não use os pronomes corretos e que faça perguntas inadequadas acaba replicando a violência que essa pessoa sofre na sociedade. Faz com que se sinta mais uma vez agredida e não compreendida. Com isso, ela evita voltar ao sistema de saúde, por mais que precise de atendimento”.
Cerca de 1,5% da população adulta brasileira é composta por pessoas trans, aquelas que se identificam com um gênero diferente daquele que lhes foi atribuído ao nascer. São mais de 3 milhões de indivíduos que precisam gozar do direito a atendimento médico respeitoso e acolhedor, previsto pelo Ministério da Saúde.
A falta desse cuidado pode ter consequências devastadoras. “Uma pessoa trans que não encontra ajuda médica vai continuar com suas necessidades. Ao não ter acesso a um especialista para passar pelos processos de afirmação de gênero, pode fazer procedimentos em lugares não adequados e se automedicar. E, se não estão colocados dentro do sistema de saúde, esses indivíduos não fazem rastreamento de doenças e tratamentos necessários para condições que possam ter”, afirma Andrea.
Sem contar as consequências para a saúde mental. “Quando não conseguem esse tipo de cuidado, as pessoas têm maior chance de sofrer com depressão, ansiedade, baixa autoestima, autoagressão e dificuldade com a autoimagem. É muito alto o índice de ideação e de suicídio nessa população”, diz Lucia Alves Lara, da Febrasgo.
Ela reforça que a sociedade, de forma geral, mas principalmente os profissionais que atuam na saúde, precisam entender que o gênero pode sim ser variável, para além da binaridade a qual se está acostumado, e aprender a lidar com isso de forma natural:
“É importante que haja um entendimento sobre as variações do gênero. É claro que cuidar de um homem cisgênero é diferente do cuidado que precisa ser prestado a um homem trans. Mas o bom atendimento à população trans começa com a terminologia. E não é difícil: basta perguntar ao paciente se ele tem nome social e como ele gostaria de ser chamado. Só isso já vai garantir o acolhimento necessário em um primeiro momento”.
Novos centros de atendimento e mais informação
Apesar de ainda ser preciso um esforço conjunto para que haja melhorias, a impressão, tanto para Lucia quanto para Andrea, é de que o atendimento a pessoas trans tem sido expandido ao longo dos últimos anos.
Recentemente, a Prefeitura de São Paulo ampliou a oferta de serviços a essa população ao inaugurar, na região central da cidade, o Centro de Referência de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais – Janaína Lima (o nome foi dado em homenagem à ativista travesti morta em 2021).
De acordo com João Tavares, gerente médico de atenção básica e especializada da Associação Filantrópica Nova Esperança (AFNE), a instalação desse atendimento é uma resposta aos vários pedidos das pessoas trans da cidade, que conseguiram o Centro por meio da luta por um lugar na sociedade: “Essa unidade terá atendimentos de nível secundário, que ultrapassa a complexidade da atenção básica e será inteiramente dedicada às necessidades da população trans”.
Os equipamentos médicos do Centro de Referência serão administrados pela AFNE e a unidade contará com profissionais especialistas como endocrinologista, ginecologista, hebiatra, psicólogo, psiquiatra, urologista e fonoaudióloga, além da equipe de enfermagem, assistência social e administrativa, somando 33 profissionais e 11 consultórios.
Os hospitais universitários também têm se tornado referência no atendimento à população trans. O Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, onde Lucia Lara atua, conta com dois ambulatórios que oferecem atendimento a essa população, que pertencem ao Centro de Reprodução Humana do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP), e recebem em torno de 500 pessoas adultas todos os dias, sem contar o atendimento às crianças.
No Einstein, como conta Andrea Hercowitz, o Grupo Médico Assistencial voltado à população LGBTQIAP+ tem feito um trabalho de consultoria para todos os profissionais interessados em saber mais e discutir sobre o tema. O objetivo é pensar em melhorias – tanto para a saúde suplementar, quanto para os serviços públicos que a própria instituição administra – e oferecer treinamento para os profissionais de saúde já atuantes.
Cuidado com pessoas trans deve começar na formação
Questionados sobre o que é urgente em termos de melhorias no atendimento a pessoas trans, Andrea, Lucia, Anne e Tito são enfáticos: a formação dos profissionais de saúde é o caminho e a saída para avanços significativos e melhorias estruturais no cuidado da população trans.
Segundo Andrea, existe o interesse em aumentar o contato com esse tema nas graduações. Mas ele tem partido mais dos próprios estudantes: “Eu trabalho com ensino de saúde LGBTQIAP+ e tenho visto demandas de alunos que nos procuram via redes sociais perguntando se podemos dar palestra em liga estudantil, que levam o contato para os professores e chamam para aulas pontuais. Aos pouquinhos, a temática vai fazendo parte da formação, mas ainda não faz parte do currículo oficial”.
Nas universidades, de forma geral, porém, o tema ainda não é amplamente abordado mesmo em países desenvolvidos: uma pesquisa feita com profissionais de saúde europeus mostra que pouco mais de 50% tiveram acesso a alguma forma de treinamento em saúde trans na formação. E 90% deles disseram acreditar que o treinamento realmente aumentaria sua competência no atendimento a essa população.
Na visão de Lucia, não há dúvidas de que essa é uma demanda urgente. Ela conta que a Febrasgo, ciente dessa necessidade, tem abraçado a causa. A federação foi a responsável pela inclusão, em meados de 2019, da atenção à saúde da pessoa trans na matriz de competência da ginecologia, ou seja, o tema passou a ser um pré-requisito e os residentes contam, desde então, com um checklist de habilidades que devem ser adquiridas na residência para que possam completar a formação. Esse é só o começo de um caminho muito mais longo.
“Não é só o ginecologista que precisa ter esse conhecimento. Todos os médicos precisariam sair da faculdade com a capacidade de atender pacientes trans. A maioria da população se vê dentro da condição trans dentro da infância e da adolescência, por exemplo. Então, é fundamental que os pediatras saibam lidar com essas crianças. Essa população existe e precisa ser atendida corretamente”, afirma Lucia.
Outra recente pesquisa mostra, inclusive, que os profissionais de saúde que trabalham em serviços de atendimento a pessoas trans têm buscado conhecimento em fontes menos confiáveis, como pesquisas na internet, ou conferências mais especializadas e artigos. Um claro indício de que treinamento e a especialização são muito necessários para a realização desses atendimentos.
Tito afirma que a falta de informação e preparo de profissionais poderia melhorar a experiência das pessoas trans na saúde. “Quando uma pessoa trans chega em um hospital ela não quer explicar sobre a existência dela, apenas quer falar sobre o que está sentindo. É um estresse que deveria ser evitado. Isso poderia ser solucionado com palestras e afins”, diz.
E, para Anne, a inclusão dessa temática na formação é, mais do que tudo, uma questão de sobrevivência: “Sinto que houve melhoria e evolução dos médicos, até porque antes nem se falava em especialista em pessoas trans e hoje até o meu psiquiatra é especialista. Mas há muitas pautas urgentes para a saúde de pessoas trans. Precisamos ser mais bem informados sobre o que acontece com o nosso corpo e de forma mais clara. E devemos encontrar profissionais preparados para nos respeitar nos consultórios, nos corredores e nos laboratórios, usando nossos nomes e pronomes corretos, sem preconceitos. Essa é uma mudança que precisa ser considerada no começo de tudo, para que, depois, não seja tarde demais”.
Em 29 de janeiro é comemorado o Dia da Visibilidade Trans. Há 14 anos consecutivos, porém, apesar da transfobia ser crime por aqui, o Brasil ainda se classifica como o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, de acordo com o relatório de 2022 da Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globalmente levantados por instituições LGBTQIA+. Esse cenário precisa mudar.
Fonte: <https://futurodasaude.com.br/populacao-trans/> acesso em 02/04/2024